Introdução
Em 28 de julho de 2022 a Organização das Nações Unidas decretou um novo direito: o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável. No entanto, sabemos que esse ambiente já não existe. Crescemos de mil milhões de pessoas para oito mil milhões em 220 anos e, desde 1970, excedemos a capacidade de regeneração do planeta. Nove em cada dez crianças, a nível global, respiram ar que excede os limites de poluição estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde. O ano de 2023 foi o mais quente alguma vez registado. O planeta já sofreu um aumento de temperatura de 1,18º C em relação à época pré-industrial e existe uma probabilidade muito elevada de se atingir o marco de 1,5º C no decorrer desta década, ultrapassando o limite que o Acordo de Paris tinha estabelecido para 2100. No Canadá, em 2023, ardeu uma extensão de florestas equivalente a 17 milhões de campos de futebol. A seca é um problema grave no Sul da Península Ibérica e estima-se que afete 75% da população mundial em 2050. Cerca de 75% da superfície terrestre livre de gelo já foi alterada e existem um milhão de espécies em risco de extinção.
Estas alterações ambientais estão a ter um profundo impacto na saúde das populações, particularmente nas populações mais vulneráveis, sendo responsáveis por cerca de 13 milhões de mortes, um quarto das mortes a nível global.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, dizia em julho de 2023: “A época do aquecimento global acabou, entrámos na era da ebulição global”. O Papa Francisco na sua exortação apostólica Laudate Deum de 4 de outubro de 2023, afirmava: “Este mundo que nos acolhe está a esboroar-se e talvez a aproximar-se de um ponto de rutura”. Os alertas não faltam. A informação está à frente dos nossos olhos. A degradação do mundo natural causada por uma cultura predatória e consumista e pelo imperativo capitalista do lucro a qualquer custo é uma evidência quotidiana e a saúde humana acusa as marcas dessa transformação.
Este é o desafio mais complexo que enfrentamos no mundo. Um desafio que exige a colaboração de todos, a todos os níveis, das nossas ações coletivas como sociedades e como países aos nossos comportamentos individuais.
Para defender a saúde dos nossos concidadãos, os profissionais de saúde e as organizações da saúde devem intervir neste combate, envolvendo-se na luta contra as alterações climáticas, a degradação ambiental e o seu impacto na saúde das populações, reduzindo a pegada ecológica do sector da saúde (que em Portugal é responsável pela emissão de 4,8% dos gases com efeito de estufa), adotando boas práticas de sustentabilidade ambiental, promovendo a consciencialização e a educação do público e dos profissionais de saúde, investindo na investigação, capacitando o sistema de saúde para dar resposta às consequências destas alterações, e adotando comportamentos amigos do ambiente.
Foi desta necessidade e com estes objetivos que nasceu, em outubro de 2022, o Conselho Português para a Saúde e Ambiente (CPSA). Reunimos atualmente 74 das principais organizações de saúde e somos a aliança mais transversal na área da saúde em Portugal.
Com a autoridade e a responsabilidade desta representatividade, numa altura em que se definem os programas eleitorais que serão votados nas próximas eleições legislativas, o CPSA apela a todos os partidos para que incluam nos seus programas medidas concretas e definam metas que levem ao cumprimento dos objetivos referidos.
As propostas do CPSA
Com vista a reduzir o impacto das alterações climáticas e da degradação ambiental na saúde da população, propomos:
- Implementação do conceito de Ambiente em Todas as Políticas, transplantando o conceito da Saúde em Todas as Políticas adotado pela Organização Mundial de Saúde para enfatizar a responsabilidade das políticas públicas dos vários sectores da governação na modificação dos principais determinantes da saúde e da equidade. Isto significa que a defesa do ambiente deve ser um critério em todas as decisões, a todos os níveis de decisão.
- Todas as decisões sobre políticas públicas devem ser apoiadas pelo conhecimento científico.
- Deve ser posta em prática uma estratégia nacional e estratégias sectoriais para a identificação, priorização e implementação de ações de mitigação e adaptação, com metas bem definidas.
- A introdução da Economia Circular numa lógica One Health deve ser transversal a todos os objetivos.
- Criação de uma Base de Dados de Indicadores Ambientais e de Saúde atualizada e de acesso aberto e com cobertura de todo o território nacional, que possa constituir uma ferramenta de apoio à avaliação e monitorização das políticas, assim como de mobilização da população em defesa dos objetivos ambientais.
Para aumentar a consciencialização e educação dos profissionais de saúde e do público em relação a estes temas deve-se:
- Investir na consciencialização e literacia ambiental do público e dos profissionais de saúde, relativamente à importância das alterações climáticas e da degradação ambiental e ao seu impacto na saúde, assim como na modificação dos comportamentos individuais.
- Introduzir estes tópicos na formação pré e pós-graduada dos profissionais de saúde e nas áreas de conhecimento que desenvolvem soluções para a saúde.
- Estimular e apoiar a investigação destes temas, particularmente no conhecimento da sua repercussão a nível nacional e regional.
- Definir metas explícitas para o cumprimento destes objetivos e criar um sistema de avaliação e de monitorização dos principais indicadores.
Para reduzir a pegada ecológica do sector da saúde deve-se:
- Promover uma estratégia nacional para todo o sistema de saúde com este objetivo, com identificação e implementação de ações a todos os níveis e metas bem definidas. Muitas destas medidas resultam em avultadas poupanças a médio e a longo prazo mesmo que possam implicar investimentos a curto prazo.
- Elaborar, publicar e implementar boas práticas de sustentabilidade ambiental nas instituições de saúde, envolvendo todos os profissionais, para identificar os produtos e processos que geram mais emissões de GEE, mais desperdício e mais poluição. São muitas as oportunidades para melhorar a sustentabilidade no sector da saúde, a começar pela eficiência energética, os sistemas de aquecimento e arrefecimento, a utilização da água e os transportes. Na área clínica citamos como exemplos a utilização de alternativas aos gases anestésicos com efeito de estufa, a reutilização de dispositivos ditos “de uso único” ou a reciclagem do Blue Wrap, mas também medidas a nível dos outros sectores que mais contribuem para a emissão de GEE, para o desperdício e para a poluição ambiental.
- A introdução de critérios ambientais na escolha de medicamentos e vacinas, a utilização em todos os seus processos, concretamente de fabrico, assim como no acondicionamento e embalagem dos seus produtos.
- Promover a existência de um Serviço de Sustentabilidade Ambiental, em cada instituição de saúde, que apoie os serviços na definição e implementação de boas práticas de sustentabilidade ambiental.
- Rever com carácter de urgência leis obsoletas, como a lei dos resíduos ou a proibição de reutilização de dispositivos médicos, que representam um obstáculo à implementação de boas práticas de sustentabilidade ambiental.
- Incluir com carácter obrigatório critérios de emissões líquidas de GEE nulas, condizentes com as metas definidas no roteiro português de neutralidade climática nas contratações e adjudicações públicas, bem como recomendar a mesma prática às entidades privadas do sistema de saúde português.
- Incentivar os hospitais a obterem a certificação de “Hospitais Verdes”.
- Implementar nas instituições de saúde medidas transversais como a redução da utilização de folhetos e documentos em papel; promover o recurso a reuniões virtuais; promover uma jornada cada vez mais híbrida dos doentes no sistema de saúde, com pontos de contato digitais e humanos; promover estilos de vida saudáveis na prática clínica, bem como uma medicina de proximidade; reduzir o excesso de rastreio, o sobrediagnóstico e o tratamento excessivo.
- Medir e publicar anualmente a pegada carbónica de todas as organizações intervenientes no Sistema de Saúde Português, bem como os resultados das suas estratégias de redução dessa pegada, de acordo com o relatório sobre a “Pegada de carbono do sector da saúde português e caminhos para a mitigação – projeto operation zero” de 21 de dezembro de 2022.
Para capacitar o sistema de saúde para responder às consequências dos fatores ambientais na saúde das populações é necessário:
- Criar um sistema de notificação das doenças e condições de saúde relacionadas com as alterações climáticas e a degradação ambiental (correlação e causalidade, quando possível): golpes de calor-doença cardio e cerebrovascular; mudança de habitat de vetores-quadros infeciosos; qualidade do ar-asma e doença pulmonar obstrutiva crónica, qualidade da água-doenças infeciosas; etc.
- Desenvolver modelos preditivos em relação a estas temáticas, que facilitem a prescrição atempada de medidas corretivas.
- Introduzir e divulgar alertas públicos em função da ameaça na saúde pública
- de problemas relacionados com alterações climáticas ou degradação ambiental.
- Garantir a existência de planos de emergência a nível institucional, local, regional e nacional, com gestão centralizada, que permitam aumentar a resiliência do sistema de saúde à atual transição epidemiológica e ao maior risco de catástrofes climáticas, incluindo a emergência de uma nova pandemia.
- Dotar os hospitais de flexibilidade, escalabilidade e uma organização matricial; integrar os diferentes níveis de cuidados; ter presente a necessidade de diminuir o trajeto dos doentes; disseminar a telemedicina; robustecer os sistemas de informação e comunicação; dotar as instituições de saúde dos recursos humanos adequados e suficientes, mantendo nos hospitais especialidades generalistas como a Pediatria e a Medicina Interna pela sua polivalência, versatilidade, eficácia e capacidade de coordenação, bem como dotar todos os hospitais de Técnicos de Saúde Ambiental.
- Instituir metas explícitas para o cumprimento destes objetivos e criar um sistema de monitorização e avaliação dos principais indicadores.
Pela direção do CPSA
Luís Campos
Presidente do CPSA
Lisboa, 31 de janeiro de 2024