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Manifesto do CPSA

para as Eleições Legislativas de 18 de maio de 2025

Introdução

 

Em 28 de julho de 2022 a Organização das Nações Unidas decretou um novo direito: o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável. No entanto, sabemos que esse ambiente já não existe. 

Crescemos de mil milhões de pessoas para oito mil milhões em 220 anos e, desde 1970, excedemos a capacidade de regeneração do planeta.  O ano de 2024 foi o mais quente alguma vez registado, com temperaturas médias excedendo os 1,5 ºC acima da época pré-industrial, o limite estabelecido no acordo de Paris para 2100. No entanto, este pode ter sido o ano mais fresco do resto das nossas vidas. Portugal e Espanha são os países europeus mais vulneráveis perante este aquecimento global. As catástrofes ambientais motivadas por estas alterações são notícias frequentes nos ecrãs das nossas televisões. Para além disso, existem cerca de 25 tipping points identificados, pontos de não-retorno  que, uma vez ultrapassados, tornarão praticamente impossível prever a intensidade, a natureza e a rapidez do que acontecerá a seguir. Um deles é o colapso das correntes atlânticas. Cerca de 75% da superfície terrestre livre de gelo já foi alterada e nove em cada dez pessoas, a nível global, respiram ar que excede os limites de poluição estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde. A água, incluindo a de consumo humano, tem concentrações vestigiais mas crescentes de substâncias de origem antropogénica, denominados contaminantes de interesse emergente, entre os quais encontramos pesticidas, fármacos, produtos  de uso industrial e micro e nanoplásticos. Cerca de 150 espécies são extintas por dia e existem um milhão de espécies em risco de extinção.

Estas alterações ambientais estão a ter um profundo impacto na saúde das populações, particularmente nas populações mais vulneráveis, sendo responsáveis por cerca de uma em cada quatro mortes, a nível global.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, dizia em julho de 2023: “A época do aquecimento global acabou, entrámos na era da ebulição global”. O Papa Francisco na sua exortação apostólica Laudate Deum de 4 de outubro de 2023, afirmava: “Este mundo que nos acolhe está a esboroar-se e talvez a aproximar-se de um ponto de rutura”. Os alertas não faltam. A informação está à frente dos nossos olhos. A degradação do mundo natural causada por uma cultura predatória e consumista é uma evidência quotidiana e a saúde humana acusa as marcas dessa transformação.

A reversão desta ameaça ainda parece possível, mas depende das decisões de cada país, de cada organização e de cada pessoa nos próximos anos. Os profissionais de saúde, para além de cuidadores, devem ser defensores dos doentes e têm um capital de confiança por parte da comunidade que não podem desperdiçar, tendo, por isso, a obrigação ética de se envolver neste desafio global e de erguer a sua voz para dizer que estas mudanças não dizem respeito apenas a ambientalistas ou a jovens radicais, mas nos afetam a todos e comprometem o futuro das próximas gerações, que são as gerações dos nossos filhos e netos.

Foi esta a motivação que nos levou a fundar o Conselho Português para a Saúde e Ambiente, a 19 de outubro de 2022.  O nosso objetivo foi criar uma rede colaborativa de organizações relacionadas com a saúde para reduzir o impacto das alterações ambientais na saúde das populações, reduzir a pegada ambiental do sector da saúde, estimular a consciencialização do público e dos profissionais de saúde, introduzir estes temas na sua formação pré e pós-graduada, incentivar a investigação e ajudar o sistema de saúde a capacitar-se para responder ao aumento do risco de catástrofes climáticas.

Este é o desafio mais complexo e transversal que temos à nossa frente no mundo de hoje e, para o enfrentar, é fundamental a cooperação de todas as diversas organizações relacionadas com a saúde. Nenhuma pode ficar de fora deste desafio.

O CPSA reúne atualmente 95 das principais organizações do sector da saúde, incluindo 17 associações, nove ordens profissionais, 11 instituições académicas, 22 sociedades científicas, quatro grupos privados de saúde, 10 laboratórios da indústria farmacêutica, seis Unidades Locais de Saúde, duas câmaras municipais, três associações de doentes, e outras, como o Instituto Nacional Ricardo Jorge, o Instituto de Medicina Tropical, a Misericórdia de Lisboa, o Montepio Rainha D. Leonor, a AGEAS, a Valormed, o SUCH e a Google, sendo atualmente a aliança mais transversal na área da Saúde.

Temos realizado colóquios, emitido comunicados, organizamos um curso internacional sobre Saúde e Ambiente em conjunto com a Escola Nacional de Saúde Pública, estamos a trabalhar com as sociedades científicas para a elaboração, publicação e implementação de orientações de sustentabilidade ambiental nos sectores da Saúde com mais impacto ambiental, criámos o Observatório Português da Saúde e Ambiente que pretende monitorizar anualmente os principais indicadores da interrelação entre saúde e ambiente, cujo primeiro relatório foi publicado em janeiro deste ano e organizámos, em 7 e 8 de fevereiro, o 1º Congresso Nacional da Saúde e Ambiente, que reuniu 1000 participantes de 50 profissões diferentes. Este ano estamos a criar núcleos temáticos para dinamizar a cooperação entre os nossos associados e vamos construir uma plataforma de boas práticas de sustentabilidade ambiental.

Com a autoridade e a responsabilidade desta representatividade, numa altura em que se definem e discutem os programas eleitorais que serão votados nas próximas eleições legislativas, o CPSA apela a todos os partidos para que incluam nos seus programas e nas suas políticas medidas concretas no âmbito desta interrelação entre saúde e ambiente e definam metas que levem ao cumprimento dos objetivos referidos.

 

As 39 propostas do CPSA

 

      Com vista a reduzir o impacto das alterações climáticas e da degradação ambiental na saúde da população, propomos:

  1. Implementar o conceito de Ambiente em Todas as Políticas, transplantando o conceito da Saúde em Todas as Políticas adotado pela Organização Mundial de Saúde, para enfatizar a responsabilidade das políticas públicas dos vários sectores da governação na modificação dos principais determinantes da saúde e da equidade. Isto significa que a defesa do ambiente deve ser um critério de todas as decisões, a todos os níveis de decisão.
  2. Apoiar todas as decisões sobre políticas públicas na área da saúde e ambiente no conhecimento científico disponível.
  3. Pôr em prática uma estratégia nacional e estratégias sectoriais para a identificação, priorização e implementação de ações de mitigação e adaptação à crise ambiental, com metas bem definidas.
  4. Adotar em todas as políticas públicas o paradigma Uma Só Saúde (One Health), que tem em conta a estreita interdependência e a indissociabilidade da Saúde Humana, Saúde Animal e Saúde Ambiental.
  5. Adotar o princípio da Economia Circular na abordagem Uma Só Saúde, de forma transversal a todos os objetivos.
  6. Monitorizar os principais indicadores da interrelação entre saúde e ambiente, criando uma ferramenta de apoio à definição e priorização das políticas públicas e mobilizando o poder local, as empresas públicas e privadas e a população em defesa dos objectivos ambientais.


    Para aumentar a consciencialização e educação dos profissionais de saúde e do público em relação a estes temas propomos:

  7. Investir na consciencialização e literacia ambiental do público relativamente à importância das alterações climáticas e da degradação ambiental e ao seu impacto na saúde e promover a modificação de comportamentos individuais através de campanhas adaptadas aos diferentes públicos-alvo, com particular ênfase na introdução destes temas nas escolas dos primeiros ciclos de ensino.
  8. Introduzir obrigatoriamente estes tópicos na formação pré e pós-graduada dos profissionais de saúde e nas áreas de conhecimento que desenvolvem soluções para a saúde.
  9. Implementar cursos de formação avançada, ao nível dos mestrados e doutoramentos, que discutam estas temáticas, nas escolas de saúde e outras.
  10. Promover ações de formação contínua e obrigatória, não conducentes a grau académico, ajustada aos vários sectores e profissionais de saúde, onde estes conteúdos sejam apresentados e discutidos, com foco na intervenção comunitária.
  11. Estimular e apoiar a investigação destes temas, envolvendo os centros de investigação ambiental, clínica e biomédica e as instituições de ensino superior com cursos na área da saúde.
  12. Definir metas claras para o cumprimento destes objetivos e criar um sistema transparente de avaliação e de monitorização dos principais indicadores.


    Para
    reduzir a pegada ambiental do sector da saúde propomos:

  13. Promover uma Estratégia Nacional para a Sustentabilidade na Saúde, com ações e metas bem definidas, abrangendo todo o sistema de saúde. Esta estratégia deve orientar a identificação e implementação de ações concretas em todos os níveis, alinhadas com os objetivos de saúde e sustentabilidade. Muitas destas medidas resultam em avultadas poupanças a médio e a longo prazo, mesmo que possam implicar investimentos a curto prazo.
  14. Introduzir a sustentabilidade ambiental como uma dimensão da qualidade dos cuidados de saúde, a par das definidas no Plano Nacional de Saúde.
  15. Elaborar, publicar e implementar boas práticas de sustentabilidade ambiental nas instituições de saúde, envolvendo todos os profissionais, para identificar os produtos e processos que geram mais emissões de GEE, mais desperdício e mais poluição. São muitas as oportunidades para melhorar a sustentabilidade no sector da saúde, a começar pela eficiência energética, os sistemas de aquecimento e arrefecimento, a utilização da água e os transportes. Na área clínica citamos como exemplos o uso de estratégias poupadoras ou alternativas aos gases anestésicos, gestão de resíduos, a reutilização de dispositivos ditos “de uso único” ou a reciclagem do Blue Wrap, mas também medidas a nível dos outros sectores que mais contribuem para a emissão de GEE, para o desperdício e para a poluição ambiental, como a hemodiálise, blocos cirúrgicos e laboratórios de patologia clínica.
  16. Introduzir critérios ambientais na escolha de medicamentos e dispositivos médicos, a utilizar em todos os seus processos, concretamente de fabrico, assim como no acondicionamento e embalagem dos seus produtos, bem como na prática da atividade dos profissionais de saúde.
  17. Instituir uma política institucional de compras sustentáveis, definindo os objetivos, metas e responsabilidades a cumprir, tendo em conta o Plano de Ação da Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas ― ECO360.
  18. Promover a aquisição de oxigénio verde nas instituições de saúde (produção de gases medicinais com recurso a energias renováveis).
  19. Promover a existência de um Serviço/Comissão de Sustentabilidade Ambiental em todas as  instituições de saúde, que apoie os serviços na definição e implementação de boas práticas de sustentabilidade ambiental. Estes órgãos, de carácter multidisciplinar, devem ter também como missão a criação de métricas e objetivos ambientais para a instituição e a sua monitorização ao longo do tempo.
  20. Rever com carácter de urgência  a lei dos resíduos e a proibição de reutilização de dispositivos médicos, que representam um obstáculo à implementação de boas práticas de sustentabilidade ambiental. Permitir, regulamentar e promover a recolha nas farmácias dos chamados corto-perfurantes.
  21. Incrementar os objetivos de recolha, destruição e/ou reciclagem de medicamentos fora do prazo de validade ou que não irão ser utilizados.
  22. Incluir com carácter obrigatório critérios de emissões líquidas de GEE nulas, condizentes com as metas definidas no Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 nas contratações e adjudicações públicas, e recomendar a mesma prática às entidades privadas do sistema de saúde português.
  23. Incentivar as unidades prestadoras de cuidados de saúde, independentemente do setor económico a que pertençam, a obterem a certificação de “Hospitais Verdes” e a tornarem-se exemplos de redução de consumo e promoção da qualidade (exs.: máquinas de vending sem produtos não-saudáveis, redução/abolição de embalagens plásticas de uso único incluindo as garrafas de água de plástico, instalação de pontos de abastecimento de água para garrafas reutilizáveis, etc.).
  24. Implementar nas instituições de saúde medidas transversais que garantam a redução do sobrerastreio, sobrediagnóstico e sobretratamento; promovam a telemedicina e uma medicina de proximidade que reduza os percursos dos doentes; invistam na prevenção da doença e promoção da saúde; reduzam a utilização de folhetos e documentos em papel; e promovam o recurso a reuniões virtuais que reduza deslocações supérfluas.
  25. Medir e publicar anualmente a pegada carbónica de todas as organizações intervenientes no Sistema de Saúde Português, assim como o seu consumo de água e energia, a sua produção de resíduos (discriminada por tipo de resíduos) e os resultados das suas estratégias de redução dessa pegada, de acordo com o relatório sobre a “Pegada de carbono do sector da saúde português e caminhos para a mitigação – projeto operation zero” de 21 de dezembro de 2022. Todas as instituições de saúde deverão realizar análises do seu impacto ambiental e definir objetivos para os próximos anos.
  26. Incluir no Portal da Transparência os indicadores de redução da pegada ambiental das unidades de saúde.
  27. Desenvolver políticas de prevenção de malnutrição (desnutrição e obesidade), apoiar o funcionamento de cantinas sociais e institucionais com ementas sustentáveis e reduzir a carga fiscal de alimentos não-processados, frutas, vegetais, alimentos locais e da época.
  28. Criar sistemas de resposta mais adequados e dignos para idosos (nas Estruturas Residênciais para Idosos) com apoio clínico diferenciado e adequado (resposta a urgências simples sem necessidade de recurso ao hospital ou MCDT), com apoio de fisioterapia, reabilitação física, cognitiva e nutricional, evitando episódios de urgência, isolamento, internamentos “sociais” e consequente impacto ambiental.
  29. Criar um espaço de discussão entre os diversos atores do mercado do medicamento (produtores, distribuidores, farmácias comunitárias, hospitais) e instituições gestoras de resíduos e efluentes líquidos, no sentido do desenvolvimento, implementação e validação de técnicas de tratamento adequadas, no sentido de impedir a libertação de resíduos de medicamentos no meio aquático.
  30. Definir estratégias de aquisição de bens no contexto dos contratos públicos, com disponibilização de dados relativos a condições mínimas (critérios obrigatórios) realistas que possam orientar os adjudicatários nas suas propostas, como por exemplo consumo de água aceitável por analisador laboratorial, consumo energético aceitável para um equipamento/dispositivo, características de impressoras, utilização de sistemas poupadores de energia em modo de descanso, temperatura mínima de conservação de reagentes, medicamentos e demais Dispositivos para Diagnóstico In Vitro (IVD), entre outros.


    Para aumentar a resiliência do sistema de saúde para responder às consequências dos fatores ambientais na saúde das populações e ao risco crescente de catástrofes climáticas e de uma nova pandemia propomos:

  31. Criar um sistema de notificação das doenças e condições de saúde relacionadas com as alterações climáticas e a degradação ambiental (correlação e causalidade, quando possível): golpes de calor/doença cardio e cerebrovascular, mudança de habitat de vetores/quadros infecciosos, qualidade do ar/asma e doença pulmonar obstrutiva crónica, qualidade da água/doenças infecciosas; etc.
  32. Desenvolver modelos preditivos em relação a estas temáticas, que facilitem a prescrição e adopção atempadas de medidas corretivas.
  33. Introduzir e divulgar alertas públicos em função da ameaça à saúde pública de problemas relacionados com alterações climáticas ou degradação ambiental, como a qualidade do ar e ondas de calor.
  34. Garantir a existência de planos de emergência a nível institucional, local, regional e nacional, que tenham em conta a capacidade instalada nos sectores público e privado, com gestão centralizada, que permitam aumentar a resiliência do sistema de saúde à atual transição epidemiológica e ao maior risco de catástrofes climáticas, incluindo a emergência de uma nova pandemia, nomeadamente dotando as unidades prestadoras de cuidados de saúde de maior flexibilidade e escalabilidade.
  35. Garantir a coordenação e comunicação entre os diferentes níveis de cuidados, incluindo a assitência social, nomeadamente através do robustecimento dos sistemas de informação e comunicação.
  36. Dotar as instituições de saúde dos recursos humanos adequados e suficientes, proporcionando-lhes formação adequada.
  37. Elaborar normas de orientação clinica para as principais causas de catástrofes climáticas.
  38. Garantir nas instituições um número adequado de especialistas generalistas (nomeadamente de Pediatria e Medicina Interna) que, pela sua polivalência, versatilidade, eficácia e capacidade de coordenação, são fundamentais para fazer face à incerteza, ao carácter sistémico de prováveis novas pandemias e à complexidade da abordagem de doentes particularmente vulneráveis, como são os doentes com multimorbilidades.
  39. Dotar todos os hospitais de Técnicos de Saúde Ambiental, promovendo a sua formação profissional e permanente actualização em parceria com outras organizações.

 

Lisboa, 15 de Abril de 2025